Nos primeiros dias de alta médica, após passar seis meses internado em estado grave por complicações causadas pela Covid-19, a rotina do analista de sistemas Henrique Batista do Nascimento, 31, tem sido de aprendizado.
Voltar a andar, ter autonomia no dia a dia e fazer parte da rotina do filho Heitor, que tinha sete meses quando ele saiu de casa para ir ao Hospital Sorocabana, na zona oeste de São Paulo, com falta de ar.
“Ele ainda me estranha um pouco, acho, porque estou muito diferente. Fui de cem para 54 quilos, minha pele escureceu e meu cabelo, que era grande, ficou muito ralo e claro”, diz Nascimento, sobre as mudanças no corpo causadas pelo tratamento, que incluiu quatro meses com um pulmão artificial e um transplante do mesmo órgão.
Uma das primeiras coisas que fez ao chegar em casa foi pegar o violão e dedilhar algumas notas para chamar a atenção do filho.
“Ele se lembrou de mim porque eu tocava bastante antes de ser internado”, conta.
O filho é fruto de uma inseminação artificial após Nascimento e a mulher, Katiane Mendes da Silva, 32, terem tentado engravidar por quatro anos sem sucesso.
O caso de Nascimento é tratado no InCor (Instituto do Coração) do Hospital das Clínicas como uma feliz exceção entre tantos pacientes internados em estado grave que não conseguiram voltar para casa. Ele foi transferido com 95% do pulmão comprometido e tomado por fibroses, uma característica comum da Covid-19, que dificulta muito a recuperação de pacientes.
Em abril, quando foi diagnosticado, ainda não estava prevista a vacinação para sua faixa etária e Nascimento não sabe onde pode ter sido infectado. “Sempre tomamos todos os cuidados. Na rua, pegava meu filho só com luvas”, diz.
Na UTI, nem a intubação conseguiu retomar os níveis normais de oxigenação do organismo, e ele foi encaminhado para a terapia com ECMO (membrana de oxigenação extra corpórea), uma espécie de pulmão artificial que mantém as trocas gasosas enquanto o órgão natural se recupera dos danos causados pelo vírus.
“Antes de ser intubado, já no centro cirúrgico, escrevi uma carta para minha família dizendo que iria voltar logo. Apaguei e voltei dez dias depois na ECMO”, lembra sobre o período em que permaneceu em coma induzido.
No total, foram 128 dias com as veias dos pulmões conectadas à máquina que oxigena o sangue do corpo. A mulher de Nascimento conta que desenvolveu um quadro de ansiedade durante o período em que o marido esteve internado.
“Tinha ataque de pânico quando recebia alguma ligação do hospital. Tremia tanto que não conseguia atender o telefone”, conta Katiane.
No InCor, o pulmão artificial foi usado em 22 pacientes com Covid-19, e as estatísticas mostram que a sobrevida de quem passa por esse tratamento é de 50%.
Na instituição, dos 22 pacientes submetidos à terapia, cinco estão vivos. “Nenhum paciente tinha ficado tantos dias quanto o Henrique”, diz Paulo Pêgo, diretor da Divisão de Cirurgia Torácica e do Programa de Transplante de Pulmão do InCor.
Segundo o médico, no auge da pandemia, o hospital chegou a ter seis pacientes simultâneos em ECMO, uma terapia restrita a casos extremamente graves por sua complexidade e alto custo de operação.
Para instalar as cânulas nos pulmões é preciso de uma equipe especializada que também lida com uma série de dificuldades no manejo clínico e laboratorial, desde dar banho no paciente até a administração de anticoagulantes.
Após 30 dias conectados à máquina, os pulmões deixam de reagir ao tratamento, e o funcionamento de outros órgãos fica comprometido. Nascimento ficou quatro vezes mais esse tempo limite.
“Lembro um dia que o sistema de filtragem do sangue pifou e eu quase morri de hipotermia”, diz ele, que conseguiu manter uma rotina de fisioterapia, jogos de videogame e sorvetes escondidos da equipe médica enquanto esteve preso ao pulmão artificial.
O analista de sistemas, então, foi habilitado para entrar na fila por um transplante bilateral de pulmão. No InCor, Nascimento foi o terceiro paciente com complicações decorrentes da Covid-19 a ser submetido ao transplante do órgão, e o único sobrevivente.
Um paciente morreu devido a infecção generalizada e o outro em razão de uma complicação abdominal que não tinha relação com o quadro causado pelo coronavírus.
Em 20 de setembro, um mês após o transplante, ele foi liberado para continuar a recuperação em casa. Sua rotina ainda é bastante afetada pelo tratamento, que inclui idas ao hospital três vezes por semana e duas sessões de inalações por dia, além de uma série de medicamentos.
“Voltei para casa com aquela sensação de dever cumprido. Prometi a minha esposa e ao meu filho que voltaria para casa, e voltei”, diz.
Apesar de ainda ter lapsos de memória, uma sequela da infecção pelo coronavírus, ele se lembra de ter ouvido a voz da mulher durante uma videochamada pelo celular de uma médica, quando ainda estava intubado e sedado.
“Lembro da sensação de querer falar com a minha esposa. Depois, a médica contou que eu comecei a chorar e tentei mexer a cabeça. Isso me marcou demais”, diz.
Na saída do hospital, Nascimento foi aplaudido por médicos e enfermeiros e recebeu uma folha de papel onde estava escrito: “Venci o Covid-19 e hoje tenho um novo pulmão”. Um grupo de amigos e familiares o recepcionou com uma faixa com os dizeres “Henrique você é um guerreiro”, “Você é nosso milagre” e “Agora é só amor”.
“Foi naquele dia que eu perdi 10 quilos só de lágrimas”, brinca. Ele atribui sua recuperação à fé e à vontade que tinha de rever sua família.
“Eu orava muito, eu queria ser salvo, não queria lutar tanto para não dar certo”, conclui ele, que pensa em usar sua história para conscientizar sobre a importância da doação de órgãos. “Quero pisar no freio em relação à minha vida profissional e aproveitar cada dia porque o amanhã não me pertence.”
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